A Aranha Desvairada

Não sou de me esquecer de um amigo. Pudera eu esquecer tão logo daquele que me inspirou a escrever tal conto atarantado.

Prólogo
Era mais um pacato fim de tarde na Terra mas que teria um desfecho jamais imaginado pela Dona Aranha, que não subira pela parede porque preferira a rota da casca grossa do caquizeiro.
D. Aranha estava pesada e cansada e teria de fazer muita força em suas oito longas patas para transportar as centenas de filhotes que acabaram de nascer, os quais nomeou, um a um, de Aranha. O ninho fora destruído depois de alguns erros de cálculos de engenharia cometido por um verme que por ali escavara e que desaparecera na terra no segundo seguinte, com medo de ser devorado sem qualquer requinte.

A Escalada
D. Aranha pudera sentir em suas patas os tremores dos raios ao longe. Ela sabia que a chuva logo cairia e se não improvisasse outro ninho, suas crias não sobreviveriam à noite. A chuva faz os vermes brotarem da terra, o que é bom quando se está com fome e existe centenas de bocas para alimentar, mas é uma má ideia quando se está fragilizado. D. Aranha estava fraca e precisava iniciar a escalada do caquizeiro. Organizou as crias em uma fileira e pata-frente-pata iniciou a escalada, e assim oito patas frágeis guiaram as outras mil patinhas tronco acima, com muita calma e disciplina.

A Queda
Em meio às crias havia uma outra, desvairada, que despencou diretamente para uma pilha de tijolos úmidos pela chuva cadente. Por instinto buscou uma fresta onde pudesse se espremer e passar a noite longe dos bombardeios que o céu mandava. "Nascer uma aranha não é nada fácil(...)", pensou, "(...) porque se espera que o que era um mero ovo dentre tantos mil um dia se torne um predador destemido, paciente e nada gentil!". A pequena aranha decidiu ser paciente e não expor seu frágil exoesqueleto aos perigos que vinham na companhia da chuva e da escuridão. Procuraria uma nova toca assim que o sol banhasse sua solidão.

A Nova Toca
Na manhã seguinte o sol foi impedido de surgir por um confronto entre o gélido vento-sul e o tropical vento-leste. A ira dos ventos encobria o céu com nuvens negras de raiva e faziam as patinhas de Aranha estremecer a cada trovoada. Uma nova toca seria necessária ou ela morreria afogada.
Eis que surge a ilustre visita de um grileiro que saltitava por ali, aproximou as antenas daquela aranha miúda e diante de minúscula ameaça o grilo cordialmente se pronunciou:
- Buenos dias? Me llamo Grilo, el grilêro¹ destas tierras arredias! A que devo a honra de tan pequeña presença? Sea gentil - advertiu Grilo - y no teremos cualquier desavença!
- Desavenças? - questionou a pequena aranha que apenas isso entendeu e que jamais pensaria em transformar aquele grilo gordo, que falava portuñol e que tinha pernas pontiagudas em seu café da manhã. - Sem grilo, Seu Grilão! Minhas quelíceras não cortariam sequer um novelo de algodão!
"Che! Amable criatura!"², pensou o grilo, mas então se lembrou que as aranhazinhas um dia crescem, "Amable a una criatura que tiene el corazón tan cerca de su proprio intestino!³ Manterei cautela o seria un tremendo desatino.". O grilo argentino se deixou levar por tamanha simpatia e aptidão, e à Aranha permitiu que se entocasse no Grande Castelo de Tijolos Vermelhos, bem em baixo, no porão.

(continua...)

¹ - Grileiro - termo que designa, no Brasil, quem falsifica documentos para, ilegalmente, tomar posse de terras devolutas ou de terceiros, bem como de prédios ou prédios indivisos. (Wikipedia)

² - "Cara! Que criatura simpática!"; a origem da interjeição "che" é obscura. Sobretudo ela é usada na região dos pampas, tanto pelos que vivem acerca do Rio de la Plata (Uruguay e Argentina) quanto no estado do Rio Grande do Sul (Brasil), traduzir a interjeição "che" para "cara" pode me render alguns insultos gaúchos.

³ - "Simpática pra uma criatura que tem o coração perto do próprio intestino!"; as aranhas de fato possuem o coração no abdômen, logo acima do intestino. Duvida? Joga no Google "aranha + fisiologia"



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